Movimento alerta a ONU sobre a negociação dos direitos indígenas em Manaus
O alerta ocorreu após a decisão do ministro Gilmar Mendes de criar uma câmara de conciliação para discutir a tese do marco temporal
Manaus – Representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e do Conselho Terena entregaram a relatora de direitos ambientais da Organização das Nações Unidas (ONU), Astrid Puentes Riaño, um relatório sobre mudanças climáticas. A entrega ocorreu na última quarta-feira (29) em um evento fechado e paralelo à audiência pública de emergência climática e direitos humanos da Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH), realizada em Manaus (AM).
No documento, as organizações do movimento indígena alertam sobre a negociação dos direitos indígenas pelo Estado brasileiro. O relatório reforça a importância da demarcação de terras indígenas como meio para mitigar as mudanças climáticas no Brasil e afirma que a tese do marco temporal, transformada em lei por meio da lei 14.701/2023, ameaça o direito ao território dos povos indígenas, a proteção ambiental e o combate aos efeitos das mudanças climáticas.
O alerta ocorreu após a decisão do ministro Gilmar Mendes no Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 22 de abril, o ministro suspendeu todas as ações que estão sob sua relatória e que pedem o reconhecimento de constitucionalidade da lei 14.701, conhecida como Lei do Genocídio Indígena. O ministro manteve a vigência da lei e determinou a criação de uma câmara de conciliação para discutir a tese. A Apib, em conjunto com suas sete organizações de base, repudiam a decisão.
Os povos indígenas e seus territórios ancestrais são guardiões do meio ambiente e estudos científicos comprovam os relevantes serviços ambientais oferecidos por eles. Segundo estudo publicado pelo Mapbiomas, ao longo de 30 anos as terras indígenas no Brasil perderam apenas 1% de toda a vegetação nativa. Já nas áreas privadas, a perda de vegetação nativa foi de mais de 20%. Além disso, dados da ONU demonstram que os territórios indígenas contêm 28% da superfície terrestre do mundo, mas abrigam 80% de toda a biodiversidade do planeta.
Audiência com a Corte IDH
A Apib, Apoinme, Conselho Terena e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) foram algumas das organizações ouvidas pela Corte IDH durante a audiência pública na cidade de Manaus, capital do Amazonas. Entre os dias 27 e 29 de maio, organizações de defesa dos Direitos Humanos e representantes de Estados, organismos internacionais, academia e instituições nacionais foram ouvidas pela Corte, após uma solicitação dos Estados do Chile e Colômbia.
O objetivo é que a Corte IDH oriente sobre a extensão das obrigações estatais em relação aos direitos humanos no contexto atual de emergência climática. Para isso, o órgão interamericano deverá responder, por exemplo, sobre como os Estados devem prevenir catástrofes climáticas, fornecer informações ambientais às comunidades e como irão proteger os defensores das causas ambientais, dentre eles mulheres, crianças e povos originários.
Na audiência, as lideranças Luiza Tuxá, da Apoinme, e Ednaldo Tukano, da Coiab e Apib, enfatizaram a necessidade da derrubada do marco temporal e expressaram preocupação com os impactos dos grandes empreendimentos voltados à produção de energias renováveis.
“A presença desses empreendimentos, bem como a mineração de lítio (necessário para a produção de baterias de celulares e carros elétricos, por exemplo), repete a lógica da expropriação territorial do período colonial e a lógica da implementação de Usinas Hidrelétricas das décadas de 1970/1980 na Bacia do Rio São Francisco, responsáveis por impactos em mais de uma dezena de povos indígenas (a exemplo dos povos Pankararé, Truká, Pankará, Pankararu e o meu Povo Tuxá, que teve seu território inundado completamente sem qualquer medida de reparação até os dias atuais)”, disse Tuxá.
Tukano completou: “Não podemos ser os responsáveis por todos os ônus da transição energética e da descarbonização da matriz energética mundial. Do mesmo modo que a negociação de nossos direitos resulta em violência em nossos territórios, a extração de minerais críticos também tem como resultado mortes e ameaças contra nossos parentes”.
Marco temporal
O marco temporal é uma tese jurídica que defende que os povos indígenas só têm direito à demarcação de suas terras tradicionais se estivessem ocupando essas terras em 5 de outubro de 1988, data da publicação da Constituição Federal do Brasil. Segundo essa tese, as terras que estavam desocupadas ou ocupadas por outras pessoas naquela data não podem ser demarcadas como terras indígenas. Esses territórios podem ser considerados propriedade de particulares ou do Estado, e não mais dos povos originários que a habitam.
Em setembro de 2023, os ministros do STF formaram maioria de votos para a derrubada da tese no judiciário e declararam a tese inconstitucional. Porém, o marco temporal foi aprovado por meio da lei 14.701, aprovada no mês de dezembro do mesmo ano. Além do marco temporal, mais sete crimes contra os povos indígenas foram legalizados.
No Supremo, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e solicitou que a lei seja declarada inconstitucional e suspensa até a finalização do julgamento na Corte.
A Apib repudia a decisão do ministro Gilmar Mendes e afirma que a ADI não foi levada em consideração por ele. A Articulação aponta que a decisão do ministro contraria o posicionamento do movimento indígena, do próprio STF e a Constituição Federal de 1988, visto que na Constituição o direito dos povos indígenas são direitos fundamentais, ou seja, não podem ser negociados.
Agora, o plenário do STF irá definir se acata ou não a decisão de Mendes. Caso a decisão seja aprovada pelos demais ministros, uma câmara de conciliação será formada por entidades de defesa dos direitos indígenas e do agronegócio, partidos políticos, poderes Executivo e Legislativo, Procuradoria-Geral da República e Advocacia-Geral da União. Cada uma das partes terá 30 dias para apresentar propostas para alcançar um consenso sobre o tema.